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quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

orides

 

ó pobre Orides

houve de inscrever tão fundo

com o prego torto

que a tinha dependurada na parede

 

nada de versos orados

ornados

despejando o contido na despensa

ideais do-eu ou daquela Outra

 

nada de escreveres vazantes

vazamentos vagos

delineando a condição pegajosa

de um dia esquisito

 

mui distinto mas tal e qual

indo para o não-mais-sendo

do conjunto qualquer-outro

armazenado na despesa da memória

 

ó pobre Orides!

 

deambulando por nenhum lugar

em sua ânsia construtiva

a agulha espetada no olho da palavra

fazendo dela o que ela não quer

 

o que ela não quer

é o que ela faz

te pendura numa sequência destrutiva

de paus-de-arara

 

uma arara

Orides

arara-uma

qual-qual quer outra

araru-ama

bebedouro

delas

andrejcaetano

[Vide Aperture]


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

tudo que penso

 

me preguntan alguna cosa

eu

em vez de pensar

torço meu pescoço para trás

jogo meus olhos para o alto

e vejo-os todos lá

plainando

tudo que penso

que

penso

andrejcaetano

Mario Lasalandra


sábado, 28 de novembro de 2020

foco

 

a foca

foca visão mira nariz

equilibrista fuça

ora bolas


a foca não foca nada

fuça

brinca

rabisca


amestrada cativa

ainda que

não força esforço

ainda que força


aplausos mestres

peixes por

bolas

ora

andrejcaetano 
[ ? ]

terça-feira, 29 de setembro de 2020

assumpção

 [devido a/por Itamar]


deste instante em diante

pasto no que ele fez da dor

ele

aquele nego negro sonda

rumo onda

quando subiu no palco

do dce da gonçalves dias

 

e

ó!

eu estava lá

 

por que eu estava lá

não sei

porque estar lá então

foi

daquele instante em diante:

aquele nego reto fino

solo alto

baixo

gigantescamente

e eu nunca mais

coube

sem saber não haver porquê

não dizer: cravaste a carne:

gestos jeitos arranhando o céu

machucando a noite

ilhas istmos continentes

tudo um dia soçobra

tanto lá

quanto ré

paraná

um sol si dói

auf wieder sehen

e o resto depois eu digo

 

e

não

não foi a música somente

foi

o país que eu era e ainda não era

doídamente negro

totalmente nego

afroparanaense

em curtos toques

paulistanamente

telegráfico batuque

um país incabível

em tanto exclusivamente

e

a palavra do corpo na música

alta tesa fina

preta

elegantesimamente

andrejcaetano [Southampton - 2013]



quarta-feira, 15 de julho de 2020

a nação em sinastria


ele fritava um ovo

olhando para a frigideira

ela disse:

 

‘você acha tudo fácil

 mas duro mesmo

 é corroer solene’

 

a chuva dedilhava a janela

lavava carros

levava erros

andrejcaetano

Chema Madoz

sexta-feira, 3 de julho de 2020

gênero I

Agora

teu sexo

sugando meus verbos

 

 Depois

 minha caneta

 rabiscando teus espíritos

 

andrejcaetano

Njideka Akunyili Crosb


sábado, 23 de maio de 2020

lápis-lázuli


ela colocou os cotovelos sobre a mesa de vidro

mirou o chão por muito tempo

 

meus pés

suas lágrimas vagarosas

 

minha coragem parva

não posso mais lembrar sobre nomes

 

como foi que nos conhecemos

quando ressinto isso sinto só sua mão no meu cabelo


andrejcaetano

Koichi Ito
Koichi Ito

sexta-feira, 1 de maio de 2020

tinir

não tem ninguém na rua     nem carro nem adolescente nem assassino
olho bem os olhos dela       não quero beijos nem lutas

                                            [só quero ver um trem num túnel]
cruzo os braços em volta dos joelhos e colo o queixo sobre um

a gente olha um para a casa do outro
ela é bonita    parece um telegrama

três estrelas cadentes uma fitinha do bonfim
ela diz: “você é bonito     é    você é sim”
andrejcaetano
Nicholas Garlab



domingo, 12 de abril de 2020

tique-taque


Barulho –
            uma poesia
decodificava
o nexo do tempo
                       E o tempo, desconexo,
                                               às vezes solfejava
                                   às vezes gralhava

Poesia –
            um murmúrio
o influxo do tempo
informava
                                   E o tempo, no afluxo,
                                               às vezes gotejava
                                               às vezes jorrava

Entre a lacuna e a praia o tempo brincava
Brincadeira com começo meio e trava
andrejcaetano


sexta-feira, 3 de abril de 2020

longo poema de natação


venho por meio deste ritmo eletrificado dizer ó quimera avança tu sozinha e deixa meu cabelo medusa crescer serpente com cloro e fumo que um esforço é tudo que se pode. as coisas. essa ameba. eu. como queira você mas o normal sempre me trouxe cavidades do tudo ou nada. este sempre foi o debate! maravilhas me dirão de cidades como se fossem algo sem povo. como se fossem gigantes. me dirão sobre mulheres como se elas fossem amor e sexo sem gênero a lhes impor. me dirão muito mais porque só o que salva é o coração. como se fosse apenas dizer para si no espelho: ó meu coração. quanta porta. venho por meio desta fechadura dizer que não tenho controle sobre o que quero. não quero nada. quero tudo. mora em meu banheiro um demônio de nome belial. dorme sossegado e não tem nada a sugerir para o meu mal ou para o mal que eu deva promover. ressona desinteressado. em minha sala vivem anjos que adoram pipoca e televisão. ó deus de djakarta! queime minha televisão! venho por meio deste computador referendar que quero morrer qualquer um e já. o passado dói gelo no meu estômago apenas porque esteve parede na minha mão e virou fotografia. o mesmo engano de pensar que belas palavras são a precisão de uma poesia. estou aqui neste prédio velho e barulhento para afirmar que da praia a visão do mar me acalma e que gosto do caminho sem gentes no início da noite e da chuva que me trespassa como se fosse ela a mão do deus e que sofro muito vendo gente humilhada e na igreja domingo quando vou sei que não interessa o medo porque agora naquela hora de qualquer morte amém e não faço nada mas não dou esmola. isso é tudo o que sou: um olhar vaidoso. um bicho que reza. apesar dessa sapiência ter chegado ao pulmão não consigo parar de mirar a piscina da cidade para ver como meus pares nadam e inverno longos verões de prostração até perceber que não sou peixe de piscina. paciência. venho por meio deste poema longo de natação dizer que a angústia de morar na beira da cidade não me avassala mais como se fosse um rei protetor a mão do deus e não a chuva que passa. que sou sozinho. que não quero nada. que o vazio é o recipiente. que a lagartixa está magra por que o inverno foi seco. que ganho pouco. que leio muito. que creio em paz. que confirmo minhas culpas em qualquer tribunal. venho por meio desta língua ancestral quebrar o ritmo de ser querendo tudo e afirmar que estou cansado demais para continuar achando que eu dirijo a minha nau. que d’agora por diante será como eu puder. um bicho do deus.
andrejcaetano

Liza Kanaeva Hunsicker

quinta-feira, 2 de abril de 2020

fronteiriças

"I am, by calling, a dealer in words; and words are, of course, the most powerful drug used by mankind"
Rudyard Kipling


certamente que Benjamin morreu para cruzar uma fronteira e Bruno Schultz morreu por não ter cruzado fronteiras e Sandor Marai empacou para nunca mais em uma fronteira e Faulkner não tinha fronteiras e Pound erigiu uma fronteira vertical e inútil e Beckett ficou murmurando meia vida inteira “há uma fronteira no meio do caminho” e Gordimer perguntou a Coetzee “não consegues ver a fronteira?” e Whitman não reconhecia fronteiras e Gabriel Garcia Márquez fez suco de fronteira e deu para as tristes putas beberem e Naipaul transfronteirizou e certamente fronteira é uma abstração que o erutidismo acadêmico desconhece: o apego pegajoso delirante tosco grosso brusco nauseabundo inebriante das palavras, como no conto de Kafka em que o que importa é o macaco em cima do realejo

andrejcaetano
Renan Ozturk






sábado, 28 de março de 2020

alcácer do sal


não me lembro bem qual era o objetivo
mas fui
como em qualquer outro dia

depois voltei
como todo mundo que ia
e no caminho de volta topei

com alguma coisa que já
não me lembro mais
não sei – como é que eu me lembraria?

depois   como de praxe   saí de novo
na volta deixei as compras ao lado da pia
fui ver televisão

onde tudo desaparecia
meu sobrenome
minha covardia

para onde eu me dirigia
o fato e o concreto
o motivo (que um eu sei que havia)

perplexo fui ao banheiro
e por alguma fisiologia
dei de frente com o grande espelho

mirei a mouraria
quanto tempo observei absorto
algo que nunca via

chamaram
meu nome ecoou osso branco no descampado
aleluia
andrejcaetano

sexta-feira, 27 de março de 2020

mitológicas III


narciso fingia caçador caçando nos bosques
fazia mesmo desfilar

narciso gostava embevecer conquistar
bochechar expelir

echo ninfa capturada-repelida
errou pelos bosques até virar som

nêmeses não tardou
matou narciso de narcisismo
andrejcaetano

[ ? ]

quarta-feira, 25 de março de 2020

gerúndio [ergo sendo]

gerĕre, 'fazer, produzir, executar'


? (@amasya3535)






 

foi
violando regras e
auscultando donzelas e
jogando com os ditados e
modernizando noivados e
enganando os desenganados e
lembrando
‘ó que sonho estranho sonhei noite passada’
(dentro do coletivo viu
o tempo de hábito franciscano e cabeça raspada
enquanto ao seu lado um romeno apressado llhe garantia
que era seu parente distante via obscuro amanuense romano)
e
desesperando a próxima estação e
descontando seu parco dinheiro e
dispensando quantos anos já havia e
inalando olhares e
roubando fumaças e
ouvindo os sinos que arranham
os ouvidos na madrugada e
depois deles os galos
sofejando seus azedos sofejos
“tá na hora! já passou!”
tudo por assim dizer
em termos mais precisos
gerundiando
não chegando não passando
tudo sendo
gritou
“mãe!”
sua mãe preocupada acorreu na madrugada
“filho! é só mais um pesadelo!”
que ele lha explicou
“não mãe! é gerúndio!
se falássemos o tupi
eu dormia em paz”
e a mãe imaginando consolar
“filho, o tupi tem três tempos gerundiais”

pois
não prestando muita atenção
[na paisagem da janela
na própria sorte]
desconsiderando nacionalidades
destemendo gitanos
acordou zonzo e só
em um trem andaluz
o Gerúndio de sempre
indo

andrejcaetano 






quarta-feira, 18 de março de 2020

mitológicas II

it would never live out
yet he waited in void

to when they were nil to each other
[or nyx  daughter of the no-cycle]

oblivion before sisyphus plays another act
[no circus]

let ero’s wife brace for aphrodite impact
[no circle]
andrejcaetano
Gustav Vigeland

sábado, 14 de março de 2020

congonhas

mais uma vez neste calor de aeroporto. meninos pululando aquiali y piozinhos de xícaras de café batendo asinhas pousando pires. elas nem tanto estorvam mas tampam a propaganda a grande cárie a grande empresa de mineração detonando cargas para desencavar marfim-ferrugem e levá-lo em trens aos portos. não há montanha em mim. cordilheiras autistas vieram e converteram as falhas. cavernas das impossibilidades naturais sem ajeitá-las confins para o que se poderia e deveria: comê-las assim mesmo. cruas. mulheres passam para lá e para cá sem adereço sexual algum. naturalmente. querem rebento. dizem. se isso é sou com elas. quero um tataraneto [não um de carnes conectando ossos] e também quero poder derreter sorvete destacado de meus potenciais talentos na frente da plateia ávida. escorrer pelo ralo de meu consagrado e insosso coração masculino e conspurcado voltar à forma corpo-esqueleto parente dos macacos (nunca! nunca! a imagem-semelhança deus). quando tudo vier a ser – a digestão do eu mesmo ou a morte – não virá cavalo grego inerte máscara mortuária estátua granítica pedra viúva. tudo ressoa neste aeroporto. pessoas mascando comestíveis uma arquitetônica cinquentista do século passado quando tudo deveria ser mais calmo pois nem tanta gente assim da minoria viajava de avião e essas vidas deviam ser menos mascáticas e é possível que não soassem como agora. talvez também as mulheres não passassem para lá e para cá ondulantes e não fosse tão óbvio em suas faces o que elas não pensam. o enfaro das trajetórias balísticas. rendez-vous. não tenho minério em minha formatura. não tenho futuro de homem sóbrio nem fim de menino órfão. não vou me desvincular dos seres caducifólios: nunca fui hodierno! nunca serei pós-tumo! tenho alguma ciência agora: essa distância é de fato e contudo não pode se esconder dos meus olhos: te vejo safada! está em minhas mãos o mapa de tuas estradas. sei exatamente onde tu não queres ir! queres fazer crer que a única saída é aprofundar a caverna. pois ouça-me bem!: também não sou abissal! não há ferro nos meus cafundós! meu pai morreu há mais de vinte séculos e minha mãe casou-se em segundas núpcias com um unicórnio que nunca contraiu moléstia humana. percorri sozinho os litorais instantâneos léguas distante das liturgias das meias idades. quando nelas cheguei adentrei bandeirante-mascate as matas do horizonte. venho de longe ziguezagueante. cícero-neante. o que sempre foi.
andrejcaetano
@robjakrobjak

quinta-feira, 12 de março de 2020

fala [orides fontela]


Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)
@raafat_saleh


segunda-feira, 9 de março de 2020

mitológicas I

alguém? antígona-ídola
     resolveu bem ser filha do rei

     [a mãe? morreu por conta própria
      afogou-se na palavra madrasta]

imagem? a esfinge nocauteada no chão
um ‘humano demasiado humano’ no queixo

tebas? que cidade careta
tudo cria de um tal oráculo
andrejcaetano
Daniel Murtagh

domingo, 1 de março de 2020

bicho-preguiça


bicho-preguiça sabe nadar nonada
sabe esvaziar vazio
não tem vontade de descer
nem de será
     [se escrevesse escrevia de sabiá
      de manga rosa espada ubá
      da alegria de carnabalizar
      das águas de pedra do rio cipó
      descendendo sem nada significar]

bicho todo-metáfora sabe sobremetaforizar
‘isso é apenas uma face do cubo de gelo’
e gargalha 
que mera admiração pelo absurdo
 [nada sabe dos significados abatidos
  nas mesas de bar
  em reuniões decentes e encontros notórios
  nas antigas salas de jantar
  em aniversários casamentos e velórios]

ai enorme bicho-preguiça
abraçado a um galho de alguidar
fumando fumaça de narceja
bicho todo só-olhar
fala de longe lindas falas lentas
sem as iniciar

a suspirar a fumaça de seu narguilé
analisa as formigas transeuntes
não tem pressa
ali sempre
o jantar a passear

ai bicho maravilhoso com pulsão tão de vagar
que vontade de te abraçar

andrejcaetano
Monica Denevan

domingo, 16 de fevereiro de 2020

livreto da inquietação V

não sou um poeta, mas um poema;
e que se escreve, apesar de ter jeito de ser um sujeito
J-M É L (on Stéphane Mallarmé)

escrever do padecimento
é o padeiro fazer tijolo
enganadamente
enganando
o fazer e o tijolo

mistura claras de idealização em farinha de fatos
adiciona óleo de miragem a essência de dissímulo
salpica palavras adocicadas sobre incerteza ocultada
coloca para assar um ano no forno das distâncias

eis o pão da angústia
puro delírio sintático
estático e semovente
distorcido e condensado
deflora-adentra-encrava

escrever de padecimento é o oleiro comer o pão
com lascas de sexo e geleia de amor
do parto do sol ao porto do chão
desejo difratando o idioma dissociador

andrejcaetano
Francesca Woodman

domingo, 9 de fevereiro de 2020

fique


A Mulher
mandou que eu me aproximasse
e lhe beijasse as órbitas
e ouvisse o mar
em sua concha coreácea
Depois ordenou
que eu deslizasse minha língua
por todo o seu costado
Exigiu então
que eu me abrigasse
entre suas ancas
e de lá só saísse
após rezar com fervor
em louvor à comunhão da carne
Durante a oração
a Mulher
Deusa da teoria dos ciclos
clamou coisas incompreensíveis
mas ao fim apenas disse
‘fique’
                                                                          andrejcaetano


terça-feira, 7 de janeiro de 2020

livreto da inquietação IV

o prodígio da palavra é tanto transmutação
[atena despeitada   aracne transformada em aranha]
quanto nulificação
[orestes assassino da mãe absolvido por minerva]

o prodígio da palavra é incontível desvelo do real
[picada trilha estrada   tempo cheiro vento]
e paralisação diante de frondosa bifurcação
[the road taken – the road not taken]

o prodígio da palavra é escape
por corredores labirintos emaranhados
onde apenas breves trechos aleitam
o alívio do inatingível na palavra sempre

a desesperança do inatingível na palavra nunca
dois advérbios de tempo atemporais
um perpetuamente [cela com a porta escancarada]
o outro jamais [porta escancarada para uma cela]

o prodígio da palavra é tão
que os vaidosos da palavra
as usam para alimentar fogueiras

e os mendigos da palavra
as usam para desconstruir moradas
onde feneceriam congelados

o prodígio da palavra é uma arapuca:
absconsos hermetismos   melífluos passatempos
preces a bifurcações onívoras
entretenimentos   mata-burros
andrejcaetano
Francesca Woodman