terça-feira, 26 de março de 2024

a mênade e gerúndio


Ikko Narahara

a mulher abriu a porta da casa das paredes pintadas em azul piscina, atravessou o curto jardim, pulou o muro como se desse um salto-voo shaolin-ninja-kung fu filme chinês, desembestou descalça correndo rua acima, arrancou a blusa correndo rua acima, levantou a longa-larga saia de estampa campesina com camponesas azuis e piscinas estampadas, correndo rua acima levantou o pano, deu um nó e o segurou como um mamão 

a seguia um pé-de-vento que assoviava uivo manso e fazia seus cabelos longos flutuarem bicolores

passou por Gerúndio correndo acima a rua que ele descia

Gerúndio parou

olhou o relógio digital parado na torre da igreja

13:13

ela berrou trovão e silvo ao mesmo tempo  ‘você quer me ouvir?’  ensurdecendo a cidade e espatifando os vidros das janelas de apartamentos de prédios com mais de 2 e menos de 20 andares

não sabendo se era com ele ou com a civilização ali, mas entendendo, Gerúndio foi respondendo bem alto ‘quero’

onde ela estava ela estacou pitonisa de algum oráculo tebano e sem se virar para ele perguntou, ‘tem homem que ouve?’

‘que ouve?, deve ter’

‘e escutam?’, retornou ela de bate-pronto

‘aí já não sei  e não falo por ninguém’

ela se virou para ele e disse ‘acho que tem homem que faz que ouve’

‘líquido e certo isso é’

‘fazem que ouvem uma mênade?’, ela trucou sem necessidade

‘nesse caso, não há como’

ela se aproximou dele e perguntou, ‘por quê?’

‘medo’

‘de quê?’

‘do real’

‘qual real?’

‘feminino’

ela deu um longo enorme gigantesco suspiro de preguiça, os galhos das árvores poucas tremeram, vasos caíram de parapeitos, parapeitos caíram de janelas espatifadas

‘e você, quem é?’, retornou ela

‘sinceramente?’

‘não há outro jeito’, decretou

‘não tem a mínima importância’

‘você é homem?’, inquiriu

‘como assim?’

‘você tem medo do real?’

‘não’

‘e quer me ouvir...?’

‘na verdade, quero escutar’

‘quem não escuta?’

‘quem não ouve’

‘bravo!, assim posso até vir a creditar-te’, ironizou

‘creditado por uma mênade?, sem palavras, alteza’

‘eu, mênade?, quem disse?’, ela questionou severamente

‘ninguém, vi e ouvi’

‘e você, não tem medo?’

‘medo de quê?’

‘das mênades’

‘por que haveria de ter?’

‘mênades matam – e esfolam – homens’, informou ela

‘não quando querem ser escutadas’

ela se calou por um milésimo de segundo que durou quase um evo e depois voltou ‘qual é o seu deus preferido?’

‘é uma deusa’

‘o meu você sabe?’

‘o seu é fácil de imaginar’

‘e por qual porquê você imagina que eu corria?’

‘alguma coisa dentro da piscina azul casa

‘isso é o óbvio, domicílio ou família?’, sabatinou economista política

‘algo que se repete há muito tempo’

‘é certo, tem história, mas receio ser longa e chata e repetitiva’

‘eu aprecio ouvir história...estória também, bastante’, Gerúndio confessando

‘vem, vamos sentar aqui no meio-fio’, ela chamou

...

‘você tem um cigarro?’

‘aqui, toma’

ela o acendeu e deu um trago tão profundo que ao inspirar o cigarro queimou de uma vez até o filtro e ao expirar ela encobriu a cidade inteira seus milhões de habitantes com uma névoa de tabaco e os mil venenos da civilização

hipnotizada pela cidade enfumaçada lá embaixo ela murmurou...

                              "então, ..."

andrejcaetano

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

tesoura-pedra-papel

Reiko Imoto


do nada subiu um vazio que nos cumprimentou serelepe ‘ei!’ e perguntou ‘e aí, o que vamos fazer?’

ficamos olhando aquilo, pasmos, boquiabertos...loucura? tapando o nada, o Vazio logo se estabeleceu explanando ‘vocês sabem, não é?, no momento em que fizermos alguma coisa eu inexisto, pelo menos temporariamente, porém, se, e somente se, a coisa, o que quer que seja, for divertida, prazerosa e insuficiente’

no vácuo ficamos, entendendo nada, essa não-coisa aerada e falante, boquirrota, demandante, queria diversão e prazer para a sua própria inexistência?

não conseguíamos abrir a boca, muito menos falar – mas estava engraçado ouvir o Vazio falar sobre preenchimento do vazio

o Vazio coçava o queixo que não tinha quando alguém perguntou ‘peraí, esse vazio aí é de quem?’

nos entreolhamos esperando ver alguém com expressão de cachorro que soltou pum na igreja, mas outro perguntou arisco ‘coisa, você é o vazio de quem aqui?’

‘como é que vou saber, se sou vazio? não faço ideia...além do que, posso ser a soma de todos os seus vazios, isso não tem a menor importância, o que interessa é o que vamos fazer  o que vamos fazer?’

‘o que você quer fazer, Vazio?’, perguntou um outro

‘sou apenas o vazio, eu mesmo não faço nada, aliás, nisso que vocês mal veem nem eu há, ou melhor, o eu que há não é meu – além do que, logo desapareço se fazem alguma coisa, mas só se essa coisa for divertida, prazerosa e insuficiente, lembrem-se’

‘isso é genérico!’ exclamou um outro inconformado

‘diversão e prazer comungados não têm nada de generalidade; pode ser raro, mas é preciso e suficiente’

‘suficiente como, se você falou que tem que ser insuficiente?’

‘é preciso e suficiente para não ser genérico; a insuficiência do divertido e prazeroso é outra coisa, é nada-vazio-falta, tipo tesoura-pedra-papel: na presença do Vazio o nada é tesoura cega; havendo falta o vazio é um seixo sendo embrulhado e reembrulhado no movimento  like a rolling stone, if you know what I mean’

‘ahn?!’, insclamou outro, ‘além de complicado, fala inglês?’

‘eu falo qualquer língua, morta, viva ou ainda por nascer’, falou o Vazio com muita preguiça de ter que explicar o óbvio, ‘mas então, o que vai ser?’, perguntou de novo

um outro troçou ‘sexo! grupal!’ – parte arregalou os olhos, parte salivou

‘não’, disse o Vazio, ‘vocês não estão entendendo, não é ter uma experiência, inédita, é fazer alguma coisa divertida e prazerosa, maturada na falta...’

um mais de saco cheio propôs, ‘que tal jogarmos essa coisa dentro do nada!’

‘à vontade’, sorriu o Vazio, ‘mas, como fui dito, na minha presença nada não há – se é que vocês já me experimentaram...’, o que fez o Vazio ruminar ‘deve ser mesmo complicado entender o que semidigo’ e tentou novamente: ‘pessoal, olha só, não é todo mundo junto, é só o Um, que são dois: o zero e o um – nem é neste-instante-agora, é para abrir a porta, ou o que quer que lhes soe fechado, do começo’

siiiii

lêêêêên

cio

de onde uma voz mezzo verdadeira mezzo zombeteira veio:

‘eu vou viajar’

‘pra onde?’, perguntaram

‘japão’

‘quando?’

‘já’

‘e as coisas todas que você tem que fazer aqui?’

‘ficam pra depois’

‘com quem você vai?’

‘sozinho, com alguém que me-eu queira e queira ir, não sei e não importa’

‘o que você vai fazer lá?’

‘perambular olhar ver saber um pouco ouvir tocar...vou sentar em um izakaia em nagoya e vou ficar amigo de uma mulher e a gente vai se apaixonar e vamos namorar até o dia em que eu for embora e nesse dia vamos chorar...niponicamente’

‘você está delirando’

‘não, estou sonhando, cruzarei o japão sonhando’

‘isso nunca...nada disso vai...e se nada disso acontecer?’

‘então tudo isso terá quase acontecido’

andrejcaetano




quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

sazuke


nas fotos de masahisa fukase

me mirando vi

corvos

 

borboletas

gelo

no estômago

 

levei o prato à pia

que me lembrou

de ter que

enfiar

uma mensagem

semiopcional

para alguém que

me enfiou

uma mensagem

semiopcional

 

raivadeu

desse nada tudo do todo

assim

 

na série de fotos

algumas são intituladas

‘da solidão dos corvos’

 

depois

masahisa fukase informou

que mesmo ele era corvo

 

um tombo

de uma escada íngreme

em um bar

em shinjuku

masahisa fukase em seu leito final

 

algumas fotografias de fukase

são seu gato

sazuke

 

só um gato

um gato

 

sem solidão

prato pia mensagem

opção

andrejcaetano

Masahisa Fukase