sábado, 28 de março de 2020

alcácer do sal


não me lembro bem qual era o objetivo
mas fui
como em qualquer outro dia

depois voltei
como todo mundo que ia
e no caminho de volta topei

com alguma coisa que já
não me lembro mais
não sei – como é que eu me lembraria?

depois   como de praxe   saí de novo
na volta deixei as compras ao lado da pia
fui ver televisão

onde tudo desaparecia
meu sobrenome
minha covardia

para onde eu me dirigia
o fato e o concreto
o motivo (que um eu sei que havia)

perplexo fui ao banheiro
e por alguma fisiologia
dei de frente com o grande espelho

mirei a mouraria
quanto tempo observei absorto
algo que nunca via

chamaram
meu nome ecoou osso branco no descampado
aleluia
andrejcaetano

sexta-feira, 27 de março de 2020

mitológicas III


narciso fingia caçador caçando nos bosques
fazia mesmo desfilar

narciso gostava embevecer conquistar
bochechar expelir

echo ninfa capturada-repelida
errou pelos bosques até virar som

nêmeses não tardou
matou narciso de narcisismo
andrejcaetano

[ ? ]

quarta-feira, 25 de março de 2020

gerúndio [ergo sendo]

gerĕre, 'fazer, produzir, executar'

foi
violando regras e admirando donzelas e brincando com os ditados e fabricando noivados e enganando os enganáveis e dizendo ‘ó que sonho estranho sonhei noite passada dentro do coletivo’ (viu o tempo de hábito franciscano e cabeça raspada enquanto um romeno apressado lhe garantia que era seu parente distante via um obscuro amanuense romano) e esperando o próximo ponto e contando seu parco dinheiro e lembrando quantos anos já havia e roubando olhares e inalando fumaças e sonhando com sinos que arranham os ouvidos na madrugada e depois deles os galos que sofejam azedos “tá na hora!” “já passou!” tudo por assim dizer em termos mais precisos gerundiando não chegando não passando tudo esquisito gritou “mãe!” sua mãe preocupada acorreu na madrugada “meu filho! é só mais um pesadelo!” e ele lha explicou “não mãe! é gerúndio! se falássemos o tupi eu dormia tranquilo” e a mãe pensando consolar “filho, o tupi tem três gerúndios”
pois
não prestando muita atenção na própria sorte e esquecendo aquelas nacionalidades acordou tonto e só em um trem andaluz o Gerúndio de sempre

andrejcaetano
@BlinkArmada


quarta-feira, 18 de março de 2020

mitológicas II

it would never live out
yet he waited in void

to when they were nil to each other
[or nyx  daughter of the no-cycle]

oblivion before sisyphus plays another act
[no circus]

let ero’s wife brace for aphrodite impact
[no circle]
andrejcaetano
Gustav Vigeland

sábado, 14 de março de 2020

congonhas

mais uma vez neste calor de aeroporto. meninos pululando aquiali y piozinhos de xícaras de café batendo asinhas pousando pires. elas nem tanto estorvam mas tampam a propaganda a grande cárie a grande empresa de mineração detonando cargas para desencavar marfim-ferrugem e levá-lo em trens aos portos. não há montanha em mim. cordilheiras autistas vieram e converteram as falhas. cavernas das impossibilidades naturais sem ajeitá-las confins para o que se poderia e deveria: comê-las assim mesmo. cruas. mulheres passam para lá e para cá sem adereço sexual algum. naturalmente. querem rebento. dizem. se isso é sou com elas. quero um tataraneto [não um de carnes conectando ossos] e também quero poder derreter sorvete destacado de meus potenciais talentos na frente da plateia ávida. escorrer pelo ralo de meu consagrado e insosso coração masculino e conspurcado voltar à forma corpo-esqueleto parente dos macacos (nunca! nunca! a imagem-semelhança deus). quando tudo vier a ser – a digestão do eu mesmo ou a morte – não virá cavalo grego inerte máscara mortuária estátua granítica pedra viúva. tudo ressoa neste aeroporto. pessoas mascando comestíveis uma arquitetônica cinquentista do século passado quando tudo deveria ser mais calmo pois nem tanta gente assim da minoria viajava de avião e essas vidas deviam ser menos mascáticas e é possível que não soassem como agora. talvez também as mulheres não passassem para lá e para cá ondulantes e não fosse tão óbvio em suas faces o que elas não pensam. o enfaro das trajetórias balísticas. rendez-vous. não tenho minério em minha formatura. não tenho futuro de homem sóbrio nem fim de menino órfão. não vou me desvincular dos seres caducifólios: nunca fui hodierno! nunca serei pós-tumo! tenho alguma ciência agora: essa distância é de fato e contudo não pode se esconder dos meus olhos: te vejo safada! está em minhas mãos o mapa de tuas estradas. sei exatamente onde tu não queres ir! queres fazer crer que a única saída é aprofundar a caverna. pois ouça-me bem!: também não sou abissal! não há ferro nos meus cafundós! meu pai morreu há mais de vinte séculos e minha mãe casou-se em segundas núpcias com um unicórnio que nunca contraiu moléstia humana. percorri sozinho os litorais instantâneos léguas distante das liturgias das meias idades. quando nelas cheguei adentrei bandeirante-mascate as matas do horizonte. venho de longe ziguezagueante. cícero-neante. o que sempre foi.
andrejcaetano
@robjakrobjak

quinta-feira, 12 de março de 2020

fala [orides fontela]


Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)
@raafat_saleh


segunda-feira, 9 de março de 2020

mitológicas I

alguém? antígona-ídola
     resolveu bem ser filha do rei

     [a mãe? morreu por conta própria
      afogou-se na palavra madrasta]

imagem? a esfinge nocauteada no chão
um ‘humano demasiado humano’ no queixo

tebas? que cidade careta
tudo cria de um tal oráculo
andrejcaetano
Daniel Murtagh

domingo, 1 de março de 2020

bicho-preguiça


bicho-preguiça sabe nadar nonada
sabe esvaziar vazio
não tem vontade de descer
nem de será
     [se escrevesse escrevia de sabiá
      de manga rosa espada ubá
      da alegria de carnabalizar
      das águas de pedra do rio cipó
      descendendo sem nada significar]

bicho todo-metáfora sabe sobremetaforizar
‘isso é apenas uma face do cubo de gelo’
e gargalha 
que mera admiração pelo absurdo
 [nada sabe dos significados abatidos
  nas mesas de bar
  em reuniões decentes e encontros notórios
  nas antigas salas de jantar
  em aniversários casamentos e velórios]

ai enorme bicho-preguiça
abraçado a um galho de alguidar
fumando fumaça de narceja
bicho todo só-olhar
fala de longe lindas falas lentas
sem as iniciar

a suspirar a fumaça de seu narguilé
analisa as formigas transeuntes
não tem pressa
ali sempre
o jantar a passear

ai bicho maravilhoso com pulsão tão de vagar
que vontade de te abraçar

andrejcaetano
Monica Denevan