cachorro preto
atarracado forte morador da rua deitado no passeio na frente do barraco de
plástico encostado no muro da escola estadual. esticado. patas da frente para a
frente as de trás molas encaixadas embaixo dos quadris. eu ia passando. o
cachorro impassível. três passos mais distante e o bicho deu um salto. rasgou
minha perna esquerda entre a canela gabriela e o aquiles tendão. literalmente na
diagonal. cão do demo. nenhum rosnado nenhum latido. voltou ao posto-posição em
que estava antes. esticou-se. não bocejou não rosnou não latiu. observava. cão
ordenado pelo amigo do deus. uma pessoa alta magra acabada saiu do barraco de
plástico. me olhou. ‘seu cão’, eu disse. ela gritou comigo. eu gritei para ela.
ela gritou a mim. meu tênis encharcado fazia splash por conta. sangue.
gritaria. saí dali. caminhei. cheguei. subi. entrei. sob o chuveiro lavei o
rasgo com sabão de coco. esfreguei com força. rasguei mais o rasgo, ‘cão do
demo, eu vivo de rasgar esta carne’. me veio a pessoa do barraco de plástico.
talvez fosse ela o demo encarnado, ‘mais vale meu cão atarracado minha vida desgraçada
do que a sua prisão’. eu matutava eu por ela. peguei um par de sandálias e fui
para o pronto-socorro de táxi movido por tempos idos. triagem. encaminhamento.
fiquei lá esperando a sutura me chamar. mais de seis horas se foram. passou da
meia-noite. tirei uma foto do rasgo para presentear a médica. ela recusou.
agradeci. ela rosnou. o tempo latiu. saí. não havia táxi. voltei para casa
assim mesmo. fui embora com meu rasgo sagrado intocado. talvez o cão fosse o
demo desencarnado. perguntei a ele, ‘era isso?’. respondi, ‘tudo bem’.
repeti a pergunta e a resposta mais três vezes antes que o ano chegasse ao meio
e um tanto de gente morresse. tudo certo.
andrejcaetano
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