quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

o Outro [carlos drummond de andrade]

 

Como decifrar pictogramas de há dez mil anos

se nem sei decifrar

minha escrita interior?

 

Interrogo signos dúbios

e suas variações caleidoscópicas

a cada segundo de observação.

 

A verdade essencial

é o desconhecido que me habita

e a cada amanhecer me dá um soco.

 

Por ele sou também observado

com ironia, desprezo, incompreensão.

E assim vivemos, se ao confronto se chama viver,

unidos, impossibilitados de desligamento,

acomodados, adversos,

roídos de infernal curiosidade.

Trivela


sábado, 19 de novembro de 2022

noite escura incidental

 

quando voltava ia para lugar nenhum

recostado no breu de um cigarro aleatório

vi o revólver no nariz

a cicatriz na montanha escura da cidade

 

ereto

tremendo

explodi o pode-ser da cachaça das chances

 

foi assim o nada descido frio em meu pescoço

foi assim e ó era tarde demais

noite brusca

 

noite escura estrela-chuva noite escura nos meus olhos

noite escura nas mãos do agiota errante

noite bruta

 

em deitado no asfalto naquela estrada olhando o céu

eu mesmo percebi que ia sobreviver

eu mesmo vi quem mandava

            a chuva há de parar e parava

            o céu há de estrelar e estrelava

 

eu não procurava nada naquela paz muda

no céu estrelado

só olhava

não tinha gente


            alguém estava em pé do outro lado da estrada

            eu olhei

            disse nada

ele respondeu

            disse assim também a mesma coisa para mim

            nada

            só olhar

 

barulho luzes uma polícia rodoviária espantou a paz

[espavorida

 bateu asas]

 eu mesmo sabia que não ia viver

 

um cão pastor atravessou a estrada

parou logo aqui

            rosnou três vezes

            para a noite escura nos meus olhos


andrejcaetano [1990]

Lorenzo Castore




domingo, 6 de novembro de 2022

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

lugar de mais-ninguém

 

sem presságios sem anunciações

coincidindo reincidentemente

outra coisa sobrevirá

aqui

onde coisa alguma

[cheia das mesmas coisas de sempre]

agora há

 

uma hora dessas [ou duas]

[se a morte não há-vida ainda]

essa outra coisa

cobra-castiçal

iluminar-se-á neon

toda leonina


pescoço de girafa

se aprumará

 

se levantará da poltrona

toda venusiana

 

toda lunática

deixará as redes

largará as cadeias de balanços

e

crisálida naquela coisa-alguma

irá até a janela

e a abrirá convocando o vento

 

sem sair do lugar

voará

esvoaçará

pássaro-inseto da mesma pulsão

outra coisa saída

outra pulsação

andrejcaetano

Carolyn Drake


quarta-feira, 13 de julho de 2022

amares


a ironia na admiração

o timbre claro e calmo para objeções

suspiros

enfado às vezes

outras

resignação

 

precisos comentários mundanos sobre o absurdo da vida

[puro embevecimento]

a fala murmurante com as plantas

as expressões do olhar nas frases mínimas

no esboço de um sorriso alguma imensurável satisfação

a face rubra e explícita de desejo quando desejo era

 


 

adorava [dizia] me ouvir quando eu danava a falar

me ouvia observante

absorvia

até que eu ex-gostasse

 

então aplicava uma objeção irônica

no meio da minha testa

e esboçava um sorriso

 

amava [disse] me ver falando

‘você fala pelos braços’

e os tomava para ela

fazendo deles um abraço

enfunado de silêncio

andrejcaetano

[? (@_ko_mon)]


 

sexta-feira, 10 de junho de 2022

mato morro e descampado


trocentos cigarros

 

entalado na saída do buraco

no meio do mato cerrado

não dava pra fazer outra coisa

 

meu cachorro me deixou pá trás

cachorro da alma danada

disse

‘fica fumando aí’

[aí no mato dentro?]

‘que cê vai cair do outro lado’

 

imaginei um descampado do outro lado

no fim do mato

depois do morro

mas parei de pensar nisso

que começou a ventar

um vento frio do cacete

soprado de uma massa bipolar

 

tremendo

acendi outro cigarro

que se não dá pra fazer nada

pelo menos sinal de fumaça

uma krenakarore quiçá veja decifre

o descampado frio dentro do mato

 

‘fica fumando aí’

aí onde

na saída do buraco

no mato sem cachorro

nos olhos krenakarore

no morro pelado

no descampado lasso?

 

pergunta idiota

 

no meio do o-que-seja

unha-de-gato

carrapato 

carrapicho

vim dar sabendo do um

quase-tudo

noves fora

nada

 

trocentos cigarros

 

e daí?

andrejcaetano

[? (@PierreBotte1)]



quarta-feira, 11 de maio de 2022

nadaquém

 

nada é

nada está

ou vem

com figura imagem

 

a piscina nada na 1ª pessoa do

singular

pluralista nada não

 

do teto cai um tatu

do dia a dia

um tudo-bem

nada além

nada

a quem

andrejcaetano

[@ertugcsayin]



quarta-feira, 4 de maio de 2022

distânsia


enquanto eu escovo os dentes

Distânsia se despe

e deita na minha cama

 

depois que bochecho

enxaguo

lavo a boca

me deito nela

 

ela me abraça

me acaricia

acalenta

cicia

shssss 

sussurra

vem

aqui

bem longe

dormir

andrejcaetano

Kristian Schuller


domingo, 20 de fevereiro de 2022

a-ponte

 

não há mais necessidade de poemia

há já um tempo o que se inscreve

é de fórum

adentro

 

onde não dá narciso secundário camuflado de ser vegetal

ficou esse escrever para ele ler depois

ficou mais tranquilo

 ficou mais sentido

 

naquele ponto em que se zanza para lá e para cá

margem direita de córrego carregado de temporal

caído no pé da serra durante a noite

córrego que urra  -[rio]---

 

naquele em que se erra para cima e para baixo

calmo

observando quando

 

observando se

a ponte submergida reemergirá

aponte o outro lado

a ponte a nado

 

isso não é uma questão porém

nem isso

imaginar se a ponte resistiu

nem se ponte existiu

andrejcaetano

[@archillect]