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sábado, 5 de julho de 2025

cão do demo


cachorro preto atarracado forte morador da rua deitado no passeio na frente do barraco de plástico encostado no muro da escola estadual. esticado. patas da frente para a frente as de trás molas encaixadas embaixo dos quadris. eu ia passando. o cachorro impassível. três passos mais distante e o bicho deu um salto. rasgou minha perna esquerda entre a canela gabriela e o aquiles tendão. literalmente na diagonal. cão do demo. nenhum rosnado nenhum latido. voltou ao posto-posição em que estava antes. esticou-se. não bocejou não rosnou não latiu. observava. cão ordenado pelo amigo do deus. uma pessoa alta magra acabada saiu do barraco de plástico. me olhou. ‘seu cão’, eu disse. ela gritou comigo. eu gritei para ela. ela gritou a mim. meu tênis encharcado fazia splash por conta. sangue. gritaria. saí dali. caminhei. cheguei. subi. entrei. sob o chuveiro lavei o rasgo com sabão de coco. esfreguei com força. rasguei mais o rasgo, ‘cão do demo, eu vivo de rasgar esta carne’. me veio a pessoa do barraco de plástico. talvez fosse ela o demo encarnado, ‘mais vale meu cão atarracado minha vida desgraçada do que a sua prisão’. eu matutava eu por ela. peguei um par de sandálias e fui para o pronto-socorro de táxi movido por tempos idos. triagem. encaminhamento. fiquei lá esperando a sutura me chamar. mais de seis horas se foram. passou da meia-noite. tirei uma foto do rasgo para presentear a médica. ela recusou. agradeci. ela rosnou. o tempo latiu. saí dali. não havia táxi. voltei para casa assim mesmo. fui embora com meu rasgo sagrado intocado. talvez o cão fosse o demo desencarnado. perguntei a ele, ‘era isso?’ respondi, ‘tudo bem’. repeti a pergunta e a resposta mais três vezes antes que o ano chegasse ao meio e um tanto de gente morresse. tudo certo.

andrejcaetano

[? (@fendiyendi)]



terça-feira, 1 de abril de 2025

estatuto

 

[ ? (@archillect)]





estatudo

sesmaria escondida

estuário escandido

aranha tamanho antanho

especiaria deslocada

feitoria

armazém mercearia

venda

[olhos anteontem

 antolhos ant’ontem]

 

estatuto ex-mensagem sinal signo semáforo farol desligado eletricidade telégrafo

sim-não longo-curto abre-fecha

oi-adeus ouro-copas paus-espada

espada?

espada

truco!

seis?

 

estatudo ex-tatu

subterrâneo

ex-passagem

adversando remetentes

quando lá missivista mis-vivia terçando penas

mas não

recibo não

nem aval

nem véu

nem aqui nem ali

vão também não

 

embora agora estatudo recipiente quebrado

caquinho rachado

hoje - desde ontem -

foi estatuto extatu recipiente-só:

abacaxi guabiroba pitanga pequi

cajá cambuci

graviola

guardiã açaí

tupi

tupi?

tupi

truco!

noves-fora

 

estatuto noves-fora claro e cristalino

[tem uma luz que arrupia]

lógico

zero-a-nove só número inteiro só

lógico

noves-fora lógica

lógico

 

estatuto noves-fora de estatudo

não-quero-nada-nem-ninguém

ainda menos dizer articular

significantes insignificantes

monossílabos

adiamentos

 

não é que eu não

[a ordem do eu é mequetrefe]

é que sim é machado alado abacateiro pato e leão

sujeito

standing

still

etc.

e

tall

 

estatuto não-quer-nada

do que há

de

 

não-quer-ninguém

que é

tendo sido

andrejcaetano 




quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

deferência

 

levei uma florzinha que peguei

no caminho

[no canteiro dum prédio]

 

não sei passar papel

constrangido

se não estou

 

cheguei lá onde é que era

e dei

 

‘tó’

‘pra ti’

 

ela sorriu

disse nada

 

a flor ela gostou

mas não podia ficar

 

foi lá me contar por que

ouvi sem escutar

 

fiquei reparando

a deferência dela

andrejcaetano

? (@restot50)