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quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

o osso da poiesis

 

um poema virá

virá um poema

que dirá

o poema que virará

fala

 

um poema virá

virá um poema

que falará

o inefável

nominará

o inominável

na palavra que inexistirá

até o advento

do poema

que virá

 

um poema virá

virá um poema

que abrirá

no meio da pedra

um caminho

 

no meio da pedra há outro poema

que

desinstalado lá

estalará

o acolá

andrejcaetano
[ ? ]



quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

papo furado

se cel, na horizontal ver


garotos e garotas se atravessam sem olhos para oásis

só miragem só miragem

 

que as mulheres iniciem a conversa

mesmo um coice

 

seda

toque

 

se a gente deitasse torrente a gente não descansava

insones      atormentados

andrejcaetano
[ ? ]


terça-feira, 7 de dezembro de 2021

outono

 se cel, na horizontal ver


não tem rio nem mar

para arear os fatos

 

palimpsesto ilegível

jornal repleto de notícias coloniais

 

a mulher me olha paralá de minha concha sabendo o que eu não sei

o que eu não sei é exclusividade das confluências

 

escleroso minha morte

dou exemplos que ela desconhece

 

é um dia assim já ao meio de si

que carrego

 

toda briga minha

muito tempo depois eu perdi

andrejcaetano

[ ? ]

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

alaikum as-salaam

Ele mora no alto de um minarete com uma vista ampla da cidade e da montanha ao fundo, a leste. A oeste a mesma coisa, ou quase. Não há vista para o sul. Há para o sudoeste. E é parcial. O que não dá mesmo para ver é o norte. Mas o norte é magneticamente claro, diz ele. Por mim, ele deveria descer do alto do minarete e caminhar ou pedalar ou tomar um ônibus ou sentar em algum lugar e olhar as pessoas que passam em todas as direções. Ele receia descer, porém. No solo ele teme que as direções não sejam tão claramente magnéticas e que o norte possa desnorteá-lo. Acho que por isso ele não sai, a não ser uma ou duas vezes por semana para fazer compras no supermercado da esquina. De vez em quando conversa comigo ao telefone. Pergunto se ele está bem e ele muda de assunto ou diz peremptoriamente “claro, clara e magneticamente”. Acho que ele espera que alguém, ou o norte, sei lá, suba no alto do minarete e conte para ele um conto ou cante uma canção que lhe sopre uma visão e lhe encarne uma centelha e o faça descer e passear pela cidade e lhe mostre como é o leste, o oeste, o sul e o norte mirados do chão. Tenho certeza, se isso fosse possível, que ele espera que seja uma mulher ou algo do sexo feminino. Ele desconfiaria de qualquer coisa do sexo masculino, ou melhor, ele não confia no senso de direção masculino. Faz um bom tempo desde a última vez em que estive no alto do minarete. De vez em quando tenho vontade de voltar. Conversar longamente. Acarinha-lo. Colocá-lo, guardá-lo dentro de mim, gozar dele e com ele. Já fomos isso. Mas eu não tenho a menor ideia do que o norte apronta e não tenho nenhum interesse em bússolas. Não são necessárias. Também não tenho muita paciência para a imobilidade. Uma aranha na tocaia, quer dizer, uma aranha imóvel na sua teia à espera. À espreita. Sem saber de quê. Na última vez em que estive lá passamos a tarde conversando, tomando chá, rindo. Eu me despedi dele com um beijo longo, lambido, lambuzado. Não sei se ele compreendeu que era uma despedida, que eu não subiria mais lá. Apenas pensei, sem pensar, que um beijo assim pudesse despertá-lo. O beijo seria uma maneira sensorial de fazê-lo perceber que a língua não tem direção e no mais das vezes não faz sentido. Lembro-me que ele ficou mudo olhando-me fixamente por alguns instantes como se tivesse tido uma revelação, de que o desejo o abandonara no alto daquele minarete. Ou de que ele largara o desejo no rés do chão. Sei lá. Tive ímpetos de colocar sua cabeça no meu colo e embalá-lo devagarinho, vagarosamente. Talvez eu tenha sentido pena dele, pena de todos os homens que são um pouco mulher e por isso se perdem entre uma coisa e outra, ambas sem importância. Isso me trouxe uma sensação de que poderia me deixar amá-lo outra vez. Ficar lá em cima ao seu lado, do lado oeste, olhando o sol sumindo na tarde e sumindo com ela. Mas não seria bom, poderia ser cruel, poderia ser cruelmente líquido e evaporar rapidamente com esse calor de abafo que tem esta cidade. Além do que não queria perder meu amigo do alto do minarete. Ao fim dos seus segundos de transe após o beijo ele disse “você ainda fala a língua de todos os sexos, salaam alaikum.” Eu sorri e me fui. Há dois dias ele me ligou para contar as novidades, quer dizer, nada, apenas pretexto para dizer o que ele precisava dizer para alguém que não ele mesmo: “estou cansado”. Eu perguntei do que ele estava cansado. Ele respondeu: “do magnetismo invisível e das bússolas inexistentes, de crer em direção e sentido...” Fiquei calada, falar o quê? Alguns segundos em silêncio, ambos, e ele continuou: “...estou mesmo é com saudade...”. Fiquei curiosa, do que ele estaria saudoso? “...da sua língua”, disse ele.

andrejcaetano

[? (@kulturtava)]


sexta-feira, 2 de julho de 2021

gerúndio e seus negócios


não há quem

enovelado em novela repetida

[cedo ou tarde]

não penhore o espírito

pela mesma aposta já perdida

desde o último grande lance

[o inconsciente é o diabo]

 

Gerúndio não

 

Gerúndio vendeu seu próprio tempo

para adquirir temporadas atemporais

[a memória de tempos

 pela memória de vidas]

 

vendeu seu corpo para si mesmo

sem opção de recompra

[en el día en que una gitana en pozo del camino

 le agasajó con dos palabras (‘mi angelito’)]

 

vendeu amor pelo seu valor de face

sem oferendas

cláusulas de retribuição

solicitações de reembolso

 

revendeu reflexos de sua imagem sem liquidez

inadvertidamente radioativas

[escandem significantes átonos

 empalidecem semblantes tônicos]

 

alheio

vendeu à sua reputação seus direitos

em negócio meta-libertário

razoavelmente pioneiro e perene

 

distribuiu a preço de algumas bananas

preciosos recursos imateriais

[inegociáveis no subsolo das negociações

 lhe abundam superficiais]

 

vende por apreço artístico

modestas parcelas de enlevação

a serem pagas no infinito

[na mesma moeda]

 

vem de si afeternura

[de porteiras abertas

 e olhos fechados]

aos que lhe são claros

 

avoado

sem cacife

Gerúndio

à mesa dos jogos

desbanca seu próprio cacique


andrejcaetano
@archillect



sábado, 22 de maio de 2021

o verso da página relata

 

artista que mais se comprazia com o defeito-terapia

do que com a arte que a conduzia

 

escrevinhadora que escrevia solilóquios sem si

sob a forma de quasi-poesia

 

amestradora de cavalos amestrados

e de um ou outro peão de boa montaria

 

estudiosa diletante que se ardia ouvindo

um ou outro sádico da antropologia

nos cursos que como ouvinte não fazia

 

curiosa da astrologia que cria em um só mapa

no qual o soturno saturno denega qualquer sinastria

 

livreira sebosa que vivia à sombra do enorme sombreiro

de outra livraria

 

namorada que sassaricava namorados

e ciscava contingências para fins de criptografia

 

um dia

espremida entre a parede da idade

e uma contingência tolamente solícita

sondou

 

‘amore, você me sustentaria?’

 

ao que

evaporaram no ar o ser e a fantasia

na mais perfeita arte da prestidigitação


andrejcaetano

[ ? ]



quarta-feira, 12 de maio de 2021

falalá


o que vai lá vai lá para falar

não pára

se adiante

silêncio

 

prossegue após pisar no onde-parou

por essa ou aquela fantasmagoria

daquela ou desse sujeito

quem-vai-lá vai lá para ser falha

 

que escapole a imagens

a qualquer simbologia

quem vai lá vai a despeito dos despeitos

vai na ponta da língua a travessia

 

se a outra ponta cala

a fala é rebaixada a blábláblá

o que melhor se enuncia em tupi

nhenhenhem 

[hoje rebaixado ao primário mimimi]

na onomatopeica conversa com o que silencia


o ser que vai lá

é o ser que fala

andrejcaetano

Lalo de Almeida



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

ki'rera


nas infâncias tinha avô

o avô tinha fazenda

a fazenda tinha um ribeiro

o ribeiro tinha uma curva

na curva tinha um remanso

no remanso era a seva

[à quirela de milho]

 

             no final da tarde tinha pescaria

             [‘deixa eu te ver peixe’ – ‘não deixo’]

 

lambari brincava

fazia de grande

fazia de pequeno

lambiscava-isca

e partia [ela na goela]

 

o avô olhava de viés o menino

a vara envergando

retesando

a linha ziguezagueando

‘é lambari’

 

tem que ter tempo de pescaria

para saber lambari

 

piau era mais vagarento

[não bobo tilápia de açude]

o avô observava de soslaio

a linha a vara a mão a face

o menino

dizia primeiro com os olhos

depois ‘seja peixe pescador’

que o menino entendia calado

‘não é lambari’

 

entre quem não via o peixe

e o peixe que não via quem

anzol

 

o passaredo silenciando

o som manso da corrente maina

luz do sol descendo pela peneira das árvores

faíscas na água do ribeiro

reflexos da noite chegando

 

um punhado de quirela ondeia o remanso

a voz do avô [‘vamos subir’]

a resposta menina fita-lhe os olhos

‘peixe avô pescador’

 

menino conversando com o silêncio ancião


andrejcaetano
Matt Bachdar

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

pé scriptum


qualquer coisa uma hora perde o pé

ou o pé se perde

onde pisa

no singular

do par não a par

[não há par]

 

onde um pé pisa

o outro observa

pré-ocupadamente

atado

pela perna sua

via tronco

à perna do outro pé

que pisa onde se perde o pé

brejo seco

solo de mármore

piso de barro

superfície lunar

 

perder o pé

metáfora deslizante em chão escorregadio

fragmento semanticamente inteligente

super além-do-mais

entre tanto

lacunar

inútil

[afinal]

no cume da oração

onde o gume cirurgião

rasga os riscos

aos finais

andrejcaetano

Divyakant Solanki


sábado, 2 de janeiro de 2021

sexo

 

tremeluz   vergasta   não passa disso

o que tu querias? a mulher idolatrada?

a esfera celestial? algum tipo de feitiço?

é carne, meu caro!, é a carne sagrada

a atrair a pedir mais carne!, chouriço!:

'vem meu amor   vem enlouquecida amada

esquecida de que existem razões e isso

navegue tua língua do alentejo até granada

e que exploda em tua boca o armistício

e assim as coisas de bons amigos consagradas

nos enxague os corpos depois do meretrício

quando fartos e desunidos estejamos nada

como o pássaro-sexo desde o seu início'

andrejcaetano

Yung Cheng Lin