Ele mora no alto de um minarete com uma vista ampla da cidade e da montanha ao fundo, a leste. A oeste a mesma coisa, ou quase. Não há vista para o sul. Há para o sudoeste. E é parcial. O que não dá mesmo para ver é o norte. Mas o norte é magneticamente claro, diz ele. Por mim, ele deveria descer do alto do minarete e caminhar ou pedalar ou tomar um ônibus ou sentar em algum lugar e olhar as pessoas que passam em todas as direções. Ele receia descer, porém. No solo ele teme que as direções não sejam tão claramente magnéticas e que o norte possa desnorteá-lo. Acho que por isso ele não sai, a não ser uma ou duas vezes por semana para fazer compras no supermercado da esquina. De vez em quando conversa comigo ao telefone. Pergunto se ele está bem e ele muda de assunto ou diz peremptoriamente “claro, clara e magneticamente”. Acho que ele espera que alguém, ou o norte, sei lá, suba no alto do minarete e conte para ele um conto ou cante uma canção que lhe sopre uma visão e lhe encarne uma centelha e o faça descer e passear pela cidade e lhe mostre como é o leste, o oeste, o sul e o norte mirados do chão. Tenho certeza, se isso fosse possível, que ele espera que seja uma mulher ou algo do sexo feminino. Ele desconfiaria de qualquer coisa do sexo masculino, ou melhor, ele não confia no senso de direção masculino. Faz um bom tempo desde a última vez em que estive no alto do minarete. De vez em quando tenho vontade de voltar. Conversar longamente. Acarinha-lo. Colocá-lo, guardá-lo dentro de mim, gozar dele e com ele. Já fomos isso. Mas eu não tenho a menor ideia do que o norte apronta e não tenho nenhum interesse em bússolas. Não são necessárias. Também não tenho muita paciência para a imobilidade. Uma aranha na tocaia, quer dizer, uma aranha imóvel na sua teia à espera. À espreita. Sem saber de quê. Na última vez em que estive lá passamos a tarde conversando, tomando chá, rindo. Eu me despedi dele com um beijo longo, lambido, lambuzado. Não sei se ele compreendeu que era uma despedida, que eu não subiria mais lá. Apenas pensei, sem pensar, que um beijo assim pudesse despertá-lo. O beijo seria uma maneira sensorial de fazê-lo perceber que a língua não tem direção e no mais das vezes não faz sentido. Lembro-me que ele ficou mudo olhando-me fixamente por alguns instantes como se tivesse tido uma revelação, de que o desejo o abandonara no alto daquele minarete. Ou de que ele largara o desejo no rés do chão. Sei lá. Tive ímpetos de colocar sua cabeça no meu colo e embalá-lo devagarinho, vagarosamente. Talvez eu tenha sentido pena dele, pena de todos os homens que são um pouco mulher e por isso se perdem entre uma coisa e outra, ambas sem importância. Isso me trouxe uma sensação de que poderia me deixar amá-lo outra vez. Ficar lá em cima ao seu lado, do lado oeste, olhando o sol sumindo na tarde e sumindo com ela. Mas não seria bom, poderia ser cruel, poderia ser cruelmente líquido e evaporar rapidamente com esse calor de abafo que tem esta cidade. Além do que não queria perder meu amigo do alto do minarete. Ao fim dos seus segundos de transe após o beijo ele disse “você ainda fala a língua de todos os sexos, salaam alaikum.” Eu sorri e me fui. Há dois dias ele me ligou para contar as novidades, quer dizer, nada, apenas pretexto para dizer o que ele precisava dizer para alguém que não ele mesmo: “estou cansado”. Eu perguntei do que ele estava cansado. Ele respondeu: “do magnetismo invisível e das bússolas inexistentes, de crer em direção e sentido...” Fiquei calada, falar o quê? Alguns segundos em silêncio, ambos, e ele continuou: “...estou mesmo é com saudade...”. Fiquei curiosa, do que ele estaria saudoso? “...da sua língua”, disse ele.
andrejcaetano
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